sexta-feira, 3 de maio de 2019

Como vim parar aqui?

Li recentemente que podemos criar significado e propósito em nossas vidas e manter um senso de autoconsciência e bem-estar ao construirmos uma narrativa coerente de nossas experiências vividas. A criação dessas histórias também desenvolveria o conhecimento sobre si mesmo, respondendo a pergunta: quem sou eu?

Refletir sobre as experiências e suas implicações para o self apoiaria a formação de domínios específicos no autoconceito (por exemplo, “eu sou tímido”), mas também aspectos estruturais e avaliativos mais amplos do autoconceito, como a clareza do autoconceito e autoestima. 
Entende-se que uma função central das histórias de vida é criar um senso de significado e propósito a partir de nossas experiências importantes. Através do raciocínio autobiográfico, as histórias de vida alcançam a coerência causal, que inclui narrar a vida em termos de motivações, causas e consequências, acrescentando significado aos eventos. Assim, sem conexões causais, a vida pareceria aleatória e sem significado e propósito... Essas palavras não são minhas, tirei daqui.

Com essa ideia em mente, resolvi narrar aquilo que eu entendi como sendo um capítulo da minha vida. Na verdade, nesse estudo que eu ví não havia a definição do que seria exatamente esse capítulo. Resolvi interpretar livremente, do tipo "maternidade", "amizade" etc. No caso, vou contar como eu vim parar no lugar que eu moro hoje. É uma história que não tem muita graça, ao meu ver, mas tentar descrever esse percurso multifacetado pode ser interessante e benéfico, como vimos.

Primeiramente é importante dizer que, se eu faço planos, a vida ri da minha cara. Acho que todo esforço que eu fiz para criar uma ordem, uma continuidade e uma lógica que vai contra aquela bobagem que diz que os geminianos não costumam terminar os projetos que começam foi em vão. Bom, em segundo, e eu acho que não vou mais seguir nenhuma ordem, talvez seja bom começar do final. Estou onde estou hoje basicamente porque meus pais venderam, em junho de 2016 e contra a minha vontade, a casa onde eu morava e eu precisei morar em algum outro lugar.

O que dizer disso? Por que os pais fazem isso com seus próprios filhos? Como sobreviver? Como olhá-los nos olhos de novo? Existe alguma lição a se aprender com uma experiência desse calibre? São perguntas corriqueiras pra quem vive algo dessa magnitude, alternadas com "o que vou comer de almoço?", "onde está o gato?".

O Que Realmente Importa

Os meus amigos tiveram reações diversas, mas havia a constante de apoio e perplexidade. Era curioso como alguns, desses que vivem um script mais Doriana, simplesmente não conseguiam conceber o que me tinha acontecido. Eu contava e havia um esboço de surpresa, mas também de muita praticidade, do tipo querendo saber quais eram meus novos planos. Meus planos eram tentar sobreviver. É bom frisar que eu não estou reclamando da reação deles, nem os culpando, porque foi algo surreal e incompreensível até pra mim, agora imagine pra eles. Aliás, dentro de todo esse contexto tumultuado, se há algo que eu não posso reclamar, absolutamente, é dos meus amigos. Das minhas amigas, né, vamos combinar. Elas foram e são tudo pra mim. Tenho um sentimento de gratidão e uma dívida infinitos para com elas. Nessa hora eu tenho que deixar a modéstia de lado e me dou parabéns por ter tido a inteligência emocional, ao longo da minha vida, de ter construído relacionamentos fortes, verdadeiros e amorosos. Do contrário, é possível que eu fosse, nesse momento, um molambo do que eu um dia fui.

Esse tópico podia até ficar ao final do texto, para realmente parecer que há uma lição, um moral, mas a importância do que está sendo dito aqui é tão grande que, por uma questão de prioridade, tem que vir em primeiro lugar. Façam amigos, pessoal. Repito, façam amigos, conectem-se. Morri de rir que li um texto do The School of Life, intitulado "Como dizer 'eu te amo' para um amigo"... Eu digo quase todo dia pra alguma amiga diferente que eu a amo. Enfim, não tenho a intenção de criticar o texto, que tem muita serventia se você não consegue expressar o seu amor pelos seus amigos!

Mas o fato é que essa rede de suporte me salvou. Elas estavam lá, embrulhando comigo meus pertences, ao meu lado no percurso para a nova morada, nadando comigo na cachoeira, do outro lado da linha me dando suporte, abrindo suas casas pra me receber quando não havia quem o fizesse, fazendo planos profissionais na tentativa de colar os pedaços do meu implodido projeto de carreira, não me deixando desistir e assim por diante. Ainda que essa situação horrível tenha acontecido, penso no paradoxo do quão sortuda eu sou.

Culpa Cristã

As minhas amigas são maravilhosas, eu já devo ter dito isso a essa altura. Uma delas me apresentou uma perspectiva super interessante a respeito da sua religiosidade. Ela é evangélica e estava me contando que sempre se sentia desconfortável com a interpretação bíblica que ela normalmente via por parte dos padres nas igrejas católicas ou pelos espíritas. Quando conversamos entendi perfeitamente o que ela queria dizer e percebi o quanto temos isso arraigado em nossa cultura, principalmente nas famílias católicas de classe média: É uma noção de que, se estamos sofrendo, esse sofrimento é merecido e que é uma fonte de expiação, ele é quase desejável, purificador, necessário. É com muito sacrifício pessoal e abnegação que devemos conseguir as coisas da vida, não é verdade?

Vamos combinar que, coincidentemente, esse é o tipo de mentalidade que atende perfeitamente quem está em uma posição social de maior prestígio e quer ver os seus subordinados domesticados. No caso, os subordinamos somos nós, a classe trabalhadora, o proletariado, mas há quem se veja como patrão, vai entender. 
Só que, meu amor, Jesus já sofreu na cruz por nós, então nessa vida devemos prosperar, fomos feitos para ser bons, mas também felizes. Não há vergonha no conforto, em conquistar aquilo que desejamos, em tentar amenizar nosso sofrimento e o dos outros. É uma percepção radicalmente simples, mas também contrária ao que normalmente vemos por aí nos meios católicos tradicionais. É claro que o discurso da minha amiga também tem suas raízes liberais, mas isso é outra história. E o que isso tem a ver comigo? Tudo. Entendo que quando incorporamos esse modo de viver a vida estamos muito mais propensos a, diante do surgimento de algumas adversidades, acabarmos adotando posturas destrutivas, de boicote para si e para os outros.

Que ideia é essa de romper com o comodismo e fazer uma segunda graduação? Por que terminar um relacionamento tão seguro e voltar pra casa dos pais? Como eu poderia ousar imaginar viver uma experiência em outro país por 5 meses? Como posso me recusar a tomar conta de uma criança para me dedicar aos meus estudos? Qual a necessidade de falar uma segunda língua estrangeira? Não vai se submeter a um emprego degradante em um escritório onde você terá a sua alegria sugada e vai optar por ter um negócio próprio? É muita audácia mesmo acreditar que se pode viver uma vida nesses moldes. Espero que estejam felizes, o desejo de vocês prevaleceu.

Se olharmos bem para a nossa síndrome de vira lata quando nos comparados aos países de primeiro mundo, isso fica muito claro também. Brinco com minhas amigas que o brasileiro é o ser mais sem autoestima que existe. Uma mulher com autoestima e senso crítico pode causar infinitas más interpretações sobre a sua postura: egoísta, esnobe, autoritária, descontrolada, promíscua. É interessante que, por mais que o seu sofrimento aumente frente às incompreensões que essa mulher levanta, mais habilidade ela precisa ter para lidar com as interpretações equivocadas sobre seus comportamentos, e ela vai se aprimorando. O aumento das tensões é o preço que se paga pela manutenção do próprio brio quando estamos em um ambiente tóxico. As vezes o preço é a própria vida.

Polarização Política, Televisão, Escolhas Pobres

No ano de 2014 eu fui forçada a passar a pensar mais criticamente em questões políticas. Eu já vinha passando por grandes mudanças desde os meus 26 anos, em 2012, a ponto de eu rever grande parte dos meus conceitos sobre diversas questões sociais, então foi um período de muita mudança interna que refletiu inexoravelmente em todas as minhas relações. Amizades e relacionamentos (ruins) acabaram, os bons se estreitaram, e eu pude construir um percurso muito mais rico em amor próprio e, consequentemente, mais leve com as outras pessoas também.

Nesse caminho eu percebi que as pessoas não querer abrir mão de privilégios, ainda que isso signifique o sacrifício de outras pessoas. Que alguns nascem com uma visão de merecimento, ou a constroem e reforçam ao longo da vida de modo que ela se torna completamente distorcida, afastando-se da noção de uma autoestima saudável.

Ficar sem televisão durante alguns anos foi simplesmente essencial para me desintoxicar e me distanciar de fontes de informações duvidosas. O hábito de ver TV, em parceria com outros costumes, me roubava o senso crítico e me anestesiava. Fora o fato de que eu precisava dedicar meu tempo a estudar e me dedicar a assuntos raramente impostos aos seres humanos normais, visto que eu estava em uma faculdade de direito. Eu devo confessar que eu precisei cursar duas faculdades de ciencias humanas pra chegar onde eu cheguei.

Bom, eu estou longe de ser uma erudita, mas vejo que o caminho que eu trilhei desembaçou minhas vistas e me tornou uma criatura incômoda pra quem não quer ver suas comodidades ameaçadas, principalmente em um lar com configurações patriarcais. O meu jeito de ver a vida, a noção de que eu mereço ser feliz e tratada com respeito e carinho, de que eu não sou a propriedade de alguém, de que tenho autonomia intelectual, o fato de eu ter quebrado algumas regras invisíveis e a percepção de quem me representa ou não passou a molestar o "equilíbrio" do meu lar e pairava no ar uma bruma de desprestígio por alguém que ousou questionar porque deveria vestir roupas que não lhe servem mais. Com o clima tenso das eleições e uma série de acontecimentos altamente desgastantes, minha família perdeu o rumo.

Em meio a um tumulto muito mais mental do que real, foram feitas, entre eles, escolhas ao sabor dos acontecimentos. Prefiro pensar que o desespero e o sofrimento eram tanto que não se pensava que poderia haver um futuro. A imediaticidade era mais importante do que as consequências e a cegueira de se ter as necessidades egoísticas satisfeitas foi mais importante do que manter a unidade. Só quem sempre precisou ouvir discursos sobre a importância da família sabe o quanto assistir decisões de uma pobreza infinita envolvendo essa instituição é patético e hipócrita. As pessoas são falhas e ignorantes, inclusive aquelas de quem dependemos e que julgávamos incapazes de nos proporcionar tamanho mal. A vida é cheia de surpresas.

O que aconteceu estava absolutamente fora do meu controle e eu posso apenas lamentar pelo arbítrio alheio. Toda a situação, entretanto, se harmoniza com o desgoverno que temos vivenciado desde então. Se formos pensar por uma perspectiva de que em casa sempre faltou senso crítico e de que as pessoas sempre reproduziram sem filtro o que é repassado pela TV e pelo senso comum, faz todo sentido que algo desse porte tenha acontecido. Se o que eles queriam era me fazer sentir desimportante e abandonada por pensar diferente, dou parabéns, foi um sucesso.

As pouquíssimas alternativas que me surgiram de continuar morando na capital não atendiam minimamente as minhas necessidades. Na verdade, surgiu uma única alternativa, e eu sou grata pela pessoa que ofereceu o quarto da própria filha para que eu pudesse morar, mas o fato de eu ter que doar um animal de estimação temperamental de 6 anos de idade e a iminência da volta da dona do quarto para ocupá-lo foram um dos fatores que me fizeram desistir automaticamente da proposta. Fora o fato de que eu absolutamente não tinha como me sustentar sozinha em uma cidade grande, com custo de vida muito alto. Então eu decidi morar com meu namorado, que gentilmente aceitou viver em minha companhia e com quem divido meus dias até hoje.

Sozinha em um apartamento já vendido, com apenas os meus pertences, um freezer, um microondas e uma gata siamesa, não me restou muita saída a não ser bater em retirada. Encaixotei tudo que eu tinha, aluguei uma Fiorino para transportar todos os meus pertences, chamei meu braço direito para me acompanhar e vim parar aqui onde hoje estou.

Como Vim Parar Nesse Lugar Mental

Essa foi certamente a fase mais desgastante de toda a minha vida e eu não sei se superei (ou vou algum dia superar totalmente) esse episódio. Eu sofri intensamente por 2 anos e houve um momento em que eu achei que eu nunca mais fosse sentir felicidade de novo, eu me sentia em pedaços. As ondas de tristeza foram se tornando mais espaçadas, outras vivências foram ocupando os espaços em branco. Pessoas me salvaram.

Era muito estranho quando eu, recém chegada na cidade, era questionada alegremente pelas pessoas que eu acabava de conhecer o motivo de eu ter me mudado. Algumas vezes eu falava, em outras eu floreava e dava alguma resposta evasiva. Salvadas as devidas proporções, eu experimentei uma sensação de marginalidade, de ser uma pária. Conversei muito sobre isso, contei essa história infinitas vezes, fui a psicólogos, psiquiatras, foi um longo percurso temporal e simbólico.

Se tem algo para o qual essa situação serviu, foi para me descolonizar de conceitos falidos de família. Aliás, o que é família? Pra mim é uma associação de pessoas pautada pelo respeito, permanência frente as inconstâncias, acolhimento, suporte, amor, troca, diálogo, crescimento, embates saudáveis, reconhecimento de potencialidades, liberdade, honestidade, generosidade, restauração da dignidade, colaboração e cooperação. Isso me fez ver também que, se é assim que eu entendo essa instituição, vou ter que construir a minha própria. Não escolhemos a família genealógica em que nascemos, as pessoas têm seus defeitos, fazem suas próprias escolhas, mas nem sempre precisamos permanecer como atores principais para assistir ao final desse filme. Temos que nos livrar de uma culpa que não nos pertence, ter clareza do que merecemos e deixar que os outros lidem com as consequências de suas decisões.

Algumas pessoas se sentiriam feridas de morte ao passarem por uma experiência parecida (ou vocês acham que o que aconteceu é um privilégio meu?), romperiam fatalmente com a sua família e eu as compreendo perfeitamente. Não é fácil lidar com os sentimentos de opressão, rejeição, abandono, solidão, injustiça e humilhação, principalmente quando oriundos de nossos relacionamentos afetivos mais fortes. A tendência é que se faça mesmo uma ruptura, em maior ou menor grau. A opção por permanecer é muito pessoal e, no meu caso, levou em conta todo o histórico de convivência: Na pior das hipóteses, é provável que, em diversos momentos, tenha havido um desejo de acertar. Eu vejo também que existe um arrependimento, embora exista também uma forte incompreensão da magnitude das consequências dessa decisão.

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